Na atual conjuntura enfrentada pelo mercado financeiro, diversas têm sido as modalidades perseguidas pelos investidores para a geração de resultados. Nesse contexto, os chamados distressed assets – ativos estressados, em tradução livre – vem sendo o foco de diversos operadores do mercado, em virtude de sua alta taxa de retorno, muito embora vinculada, diretamente, ao elevado risco.
Inúmeros são os exemplos de ativos estressados, mas, atualmente, o mercado vem voltando o olhar, especialmente, para créditos em desfavor de órgãos públicos (precatórios) e também de pessoas naturais e jurídicas, geralmente judicializados.
No que importa, em especial, a esses dois exemplos, a estratégia de investimentos em ativos estressados está calcada na procura de créditos que estejam, no mais das vezes, enfrentado longa jornada no Poder Judiciário, sem que, contudo, o credor originário tenha galgado êxito na satisfação de seu crédito.
Nessas circunstâncias, os gestores de Fundos de Investimento, em especial FIDC’s (Fundos de Investimento em Direitos Creditórios), assim como securitizadoras ou investidores individuais, promovem a aquisição de referidos ativos, ao passo em que, com a contratação de bancas advocatícias que possuam expertise em tornar efetivas tais recuperações, passando a desenvolver estratégias mais eficientes visando atingir sucesso na empreitada em questão.
E, mediante ampla análise da jurisprudência, a grande parcela dos êxitos alcançados nessa trajetória continua a ocorrer por meio do reconhecimento judicial de atos, nada “ortodoxos”, praticados pelos devedores, em especial àqueles tendentes a provocar a Desconsideração da Personalidade Jurídica.
A esse propósito, merece ser registrado que, a partir de 2019, com a entrada em vigor da Lei de Liberdade Econômica, significativas alterações se fizeram presentes, notadamente no dispositivo legal que regula a modalidade de superação da limitação da responsabilidade patrimonial dos sócios, estabelecendo o legislador critérios mais objetivos de “levantamento do véu”.
Sinteticamente, para estipular as hipóteses de superação da limitação da responsabilidade, para atingir os sócios e/ou administradores das entidades empresariais devedoras, o legislador fixou que será necessária a demonstração, pelo credor, de atos concretos de abuso da personalidade jurídica, caracterizados pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial.
A legislação ora invocada, estampada no artigo 50 do Código Civil, fixa como desvio de finalidade a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores com a prática de ilícitos, ao passo que, na confusão patrimonial se configura através da ausência de separação do acervo de bens e recursos da empresa com os do empresário, e vice-versa.
Releva mencionar, por oportuno, que há muito já estão fixadas outras hipóteses para a aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica, merecendo ser citadas, exemplificativamente, as desconsiderações inversas (quando as obrigações do sócio passam a ser direcionadas à sua empresa), expansiva (quando as obrigações da empresa acabam sendo arcadas por outra pessoa jurídica, geralmente pertencente ao mesmo grupo econômico) e indireta (quando as obrigações da pessoa jurídica passam a ser direcionadas a uma empresa afiliada que esteja sendo utilizada em confusão patrimonial ou desvio de finalidade).
Contudo, a despeito da abstração dos conceitos jurídicos acima invocados, mediante consulta aos mais recentes precedentes da Justiça paranaense, publicados até a data de redação deste artigo, revela-se perfeitamente possível compreender que são eles os principais oportunizadores da satisfação creditícia, isto é, quando apurado, pelo julgador, as devidas consequências nefastas aos interesses dos titulares dos créditos.
E, para destacar, promove-se, abaixo, a reprodução de ementa de interessante julgado da Corte Paranaense, apto a revelar à configuração da desconsideração da personalidade jurídica:
“AGRAVO DE INSTRUMENTO (…) DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA – ELEMENTOS SUFICIENTES PRESENTES PARA APLICAÇÃO DO ARTIGO 50 DO CÓDIGO CIVIL – ABUSO DA PERSONALIDADE JURÍDICA, COM DESVIO PATRIMONIAL E CONFUSÃO PATRIMONIAL DEMONSTRADOS – OBJETO SOCIAL IDÊNTICOS, PROXIMIDADE ENTRE OS SÓCIOS E AUSÊNCIA DE PATRIMÔNIO DA DEVEDORA – DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA DEVIDA – DECISÃO MANTIDA (…).”
(TJPR – 8ª C.Cível – 0013317-15.2021.8.16.0000 – Campina Grande do Sul – Rel.: JUIZ DE DIREITO SUBSTITUTO EM SEGUNDO GRAU ADEMIR RIBEIRO RICHTER – J. 04.11.2021)
Consoante se identifica acima, a 8ª Câmara Cível houve por bem deferir a desconsideração quando verificados os seguintes elementos: objeto social idêntico, proximidade entre sócios e ausência de patrimônio da entidade devedora. Nesse contexto, houve por bem o Tribunal do Paraná qualificar como existente a confusão patrimonial, de modo a se concluir pelo necessário prosseguimento da execução em face de outra sociedade.
Em outro caso, bastante peculiar, a orientação do Tribunal do Paraná decreta a desconsideração da personalidade jurídica quando há elemento de demonstração de sucessão fática entre empresas, o que serviria à demonstração de confusão empresarial, veja-se:
“(…) ELEMENTOS PRODUZIDOS DURANTE A INSTRUÇÃO PROCESSUAL QUE CONCLUIRAM PELO RECONHECIMENTO DA SUCESSÃO EMPRESARIAL – EXISTÊNCIA DE CONFUSÃO ENTRE OS SÓCIOS – DESENVOLVIMENTO DAS ATIVIDADES COMERCIAIS NO MESMO LOCAL, QUE A EMPRESA FALIDA – UTILIZAÇÃO DO MESMO MAQUINÁRIO – PRECEDENTES – (…) SENTENÇA MANTIDA. (…) ‘A sucessão de empresas ocorre quando há transferência do estabelecimento comercial, que ‘é composto por patrimônio material e imaterial, constituindo exemplos do primeiro os bens corpóreos essenciais à exploração comercial, como mobiliários, utensílios e automóveis, e, do segundo, os bens e direitos industriais, como patente, nome empresarial, marca registrada, desenho industrial e o ponto’ (REsp 633.179/MT, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 02/12/2010, DJe 01/02/2011).
(TJPR – 17ª C.Cível – 0003223-53.2018.8.16.0019 – Ponta Grossa – Rel.: JUÍZA DE DIREITO SUBSTITUTO EM SEGUNDO GRAU ANA PAULA KALED ACCIOLY RODRIGUES DA COSTA – J. 14.10.2021
Como se vê, lastreando-se na orientação do Colendo Superior Tribunal de Justiça, a Corte paranaense entendeu por identificar requisitos inerentes à necessidade de desconsideração quando há utilização da mesma sede, bem como dos mesmos maquinários, em confusão de sócios, que eram parentes entre si e residiam no mesmo imóvel, ocasionando, assim, a confusão patrimonial.
Por fim, em recentíssimo precedente da lavra do Juiz de Direito Substituto em 2º Grau, Dr. José Ricardo Alvarez Vianna, publicado em 13.12.2021, o Tribunal paranaense fixou como demonstrado o desvio de finalidade na seguinte hipótese:
“(…) PRESSUPOSTOS: A) COMPROVAÇÃO DE DESVIO DE FINALIDADE DA PESSOA JURÍDICA (TEORIA SUBJETIVA) OU B) DEMONSTRAÇÃO DE CONFUSÃO PATRIMONIAL ENTRE AS ATIVIDADES DA EMPRESA E DE SEUS SÓCIOS (TEORIA OBJETIVA) (CC, ART. 50, “CAPUT”, e §§). (…) CONSTITUIÇÃO, NO CASO, DE NOVA PESSOA JURÍDICA, NO MESMO RAMO COMERCIAL, NO MESMO ENDEREÇO, SOB FORMA DE EMPRESA INDIVIDUAL DE RESPONSABILIDADE LIMITADA (EIRELI), FORMADA POR PESSOA FÍSICA OCUPANTE DE CARGO DE CONFIANÇA NA ANTERIOR (GERENTE INDUSTRIAL), ENTÃO ENCERRADA IRREGULARMENTE. NÃO ADIMPLEMENTO DAS OBRIGAÇÕES ANTERIORES, SEGUIDA DE ENCERRAMENTO DA EMPRESA INDIVIDUAL NOVA POR LIQUIDAÇÃO VOLUNTÁRIA. CONTEXTO FÁTICO QUE, EM SEU CONJUNTO, INDICA DESVIO DE FINALIDADE EM DETRIMENTO DOS CREDORES. DESCONDESIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE DA PERSONALIDADE JURÍDICA CABÍVEL (CC, ART. 50, § 1º). RECURSO CONHECIDO E PROVIDO EM PARTE.”
(TJPR – 14ª C.Cível – 0031237-02.2021.8.16.0000 – Curitiba – Rel.: JOSE RICARDO ALVAREZ VIANNA – J. 13.12.2021)
Conforme pode se identificar acima, a desconsideração da personalidade jurídica quedou decretada em virtude da prática de atos dotados de desvio de finalidade, posto que o gerente industrial da empresa devedora abriu uma nova pessoa jurídica, com mesmo ramo comercial, no mesmo endereço, em período imediatamente sequencial ao encerramento da devedora originária, por liquidação voluntária.
Nessas circunstâncias, ficou evidente que a nova pessoa jurídica, titularizada por antigo gerente da devedora, tinha o condão de permitir a continuidade dos negócios, sob uma nova empresa, circunstância que, claramente, almejava frustrar credores.
Não sem razão, colhe-se dos exemplos expostos neste breve comentário, que a desconsideração da personalidade jurídica, em suas diversas formas, tem sido o elemento mais profícuo, quando identificadas fraudes, de permitir o redirecionamento de execuções judiciais a responsáveis solventes.
E, a despeito de seu conceito estar bastante difundido no direito pátrio, a cada novo julgamento, se consolida, mais a mais, a importância no ordenamento jurídico de medidas aptas a assegurar, tanto aos credores, como aos investidores, interessados em ativos distressed, a possibilidade de terem os créditos adimplidos, com especial enlevo quando o devedor praticar atos caracterizadores do desvio de finalidade ou confusão patrimonial.
MATHIAS MENNA BARRETO MONCLARO
Formado pela Universidade Positivo no ano de 2012. Inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional do Paraná sob nº 66.373. Cursou especialização em Processo Civil pelo Instituto Romeu Felipe Bacellar no ano de 2013. Concluiu Legal Law Master (LLM) em Direito Corporativo pela Universidade Positivo no ano de 2015. Concluiu especialização em Gestão de Negócios na Fundação Dom Cabral em 2019. Realizou curso de extensão em Direito Societário na PUC-SP em 2021, bem como realizou cursos nas áreas de arbitragem, demonstrações financeiras e direito das sucessões. Atualmente é membro da Comissão de Direito Empresarial da OAB/PR.
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