A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA DOS FUNDOS DE INVESTIMENTOS DE PARTICIPAÇÃO

  • Por:Cunha de Almeida
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Para exame do tema acima, é necessário estudar, além da recente orientação do STJ, também a legislação que disciplina os fundos de investimento.

De início, é de se apontar que a Lei n. 4.728/1965 (Lei do Mercado de Capitais), em seção que trata sobre as sociedades e fundos de investimento, consigna que os mesmos têm natureza condominial, consoante previsão estampada no artigo 50.

Complementando, merece observância, para fins de exame da constituição e funcionamento dos fundos, o teor da Circular n. 2.616/1995 do Banco Central do Brasil, adotando o conceito, ainda na década de 1990, que já definia a sua natureza jurídica: “Art. 1o O fundo de investimento financeiro, constituído sob a forma de condomínio aberto (…)

Ato contínuo, a partir da entrada em vigor da Lei n. 10.303/2001, incluindo o inciso V, no art. 2º, da Lei no 6.385/1976 (Lei do Mercado de Valores Mobiliários), as cotas dos fundos de investimento passaram a ser classificadas como valores mobiliários. Desde então, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) passou a deter competência exclusiva para regular a temática.

Nesse espeque, deve-se registrar que a constituição dos fundos sob a forma de condomínio continuou a constar das diversas instruções da CVM, estando vigente, na atualidade, a Instrução CVM no 555/2014.

Cumpre anotar, por fim, que a Lei no 13.874/2019 (Lei de Liberdade Econômica), acrescentou ao Código Civil, no Livro III do Direito das Coisas, o Capítulo X, prevendo que “O fundo de investimento é uma comunhão de recursos, constituído sob a forma de condomínio de natureza especial, destinado à aplicação em ativos financeiros, bens e direitos de qualquer natureza” (art. 1.368-C).

Assim, a partir das alterações trazidas pela citada Lei (13.874/2019), o Código Civil estipulou a inaplicabilidade das disposições constantes dos arts. 1.314 ao 1.358-A (que versam sobre os condomínios) aos fundos de investimento, além de atestar competência exclusiva da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) a disciplinar a matéria (art. 1.368-C, §§ 1o e 2o)

E, nesse sentido, torna-se evidente que: a) as normas aplicáveis aos fundos de investimentos dispõem serem eles constituídos sob a forma de condomínio; b) nem todos os dispositivos legais que disciplinam os condomínios são aplicáveis aos fundos de investimento, sujeitos a regramento específico pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM); c) embora destituídos de personalidade jurídica, aos fundos de investimento aplicam-se direitos e deveres, tanto em suas relações internas quanto externas e; d) não obstante exercerem suas atividades por intermédio de seu administrador/gestor, os fundos de investimento podem ser titulares, em nome próprio, de direitos e obrigações.

Consoante abalizada doutrina, em especial do Eminente Professor Eduardo M. Dotta, ao cotista de um fundo de investimento não se conferem as prerrogativas inseridas no art. 1.314 do Código Civil, uma vez que não desfruta de direitos em face dos ativos implícitos ao fundo constituído, tal qual o condômino possui em relação à copropriedade condominial, mas apenas dos direitos ligados à fração representativa da sua participação proporcional no fundo.

Em aludido contexto, parece coerente a orientação extraída de precedente relatado pelo Ministro Marco Bellizze, no julgamento do REsp n. 1.388.642/SP:

(…) A partir da constituição do fundo de investimento, que se dá por meio da reunião de aportes financeiros manejados por investidores, o terceiro administrador os aplica em títulos e valores mobiliários, com o intuito de obter lucro/rendimento, sujeitando-se aos riscos das variações dos índices do mercado financeiro.

O capital investido, assim, é convertido em cotas, distribuídas proporcionalmente aos investidores, que passam a ter direito apenas sobre estas frações patrimoniais do fundo (cotas) — e não sobre todo o patrimônio do fundo, do que ressai o caráter sui generis do propagado condomínio —, o que lhes confere o direito aos respectivos rendimentos, o direito de resgate e o direito de participar, ao final, da liquidação do fundo, se for o caso, sempre vinculados aos ativos financeiros que compõem a carteira de investimentos do Fundo” (Corte Especial, julgado em 3/8/2016, DJe 6/9/2016).

Feito esse posicionamento, pode parecer adequada a afirmação de que o patrimônio gerenciado pelo Fundo de Investimentos pertence, em condomínio, a todos os investidores (cotistas), de modo a se impedir a responsabilização do todo por dívida de um único cotista. Assim, em tese, não poderia a constrição judicial recair sobre o ativo comum do fundo de investimento por dívidas de um só cotista, ressalvada a penhora apenas da sua cota-parte.

Nessa ordem de pensar, as cotas dos fundos de investimento podem ser objeto de penhora em processo de execução, por dívidas pessoais dos próprios cotistas, mas não podem ser penhoradas por dívidas do fundo, tampouco de outros cotistas que não tenham nenhuma relação com o verdadeiro devedor, respeitando-se a autonomia patrimonial de cada qual.

Contudo, de acordo com recente orientação emanada pelo Colendo Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial n. 1965982 – SP, de Relatoria do Ministro Villas Boas Cueva (cujo acórdão foi publicado em 17.06.2022) essa limitação, no entanto, de observância clara em circunstâncias normais, deve ceder quando houver comprovação de que a constituição do fundo de investimento ocorreu fraudulentamente, como modo de encobrir ilegalidades e ocultar o patrimônio de empresas pertencentes a um mesmo grupo econômico, sempre cabendo ao interprete se acautelar para não atingir as cotas titularizadas por quem não possui relação com o executado.

Importante mencionar que, segundo a Corte Superior, em aludido jugalmento, o fato dos fundos de investimento serem fiscalizados pela CVM, além de terem suas informações contábeis auditadas e disponibilizadas ao público, não impede a prática de fraudes associadas, não às atividades do fundo em si, mas dos seus cotistas, que dele se valem para encobrir ilegalidades e ocultar patrimônio.

Ao examinar o feito específico, que envolvia a gigante agropecuária Bertin (Bertin Fundo de Investimentos em Participação), o Eminente Ministro Ricardo Villas Boas Cueva, no julgamento do Recurso Especial citado anteriormente, asseverou as seguintes circunstâncias fáticas, absolutamente peculiares, tendentes a ocasionar, na visão da Corte Superior, o desvio da finalidade e a confusão patrimonial que geram a necessidade de se desconsiderar o véu da personalidade jurídica:

(…) No caso, como visto, a desconsideração inversa da personalidade jurídica foi determinada com base em desvio de finalidade e confusão patrimonial, estando o acórdão recorrido, portanto, em perfeita consonância com o entendimento desta Corte Superior.

É importante destacar que a presente execução foi inicialmente promovida por BASF S.A. contra XINGULEDER COUROS LTDA. e respectivos fiadores, sendo a referida empresa sucedida por BRACOL HOLDING LTDA. – questão definitivamente decidida em outros incidentes relacionados com a mesma demanda.

Extrai-se do acórdão recorrido que o recorrente tinha, inicialmente, como detentora integral de suas cotas, a empresa Bracol Holding Ltda., fato cuja veracidade pode ser aferida mediante simples consulta ao endereço eletrônico da CVM, no qual consta a informação de que o referido fundo, no período de outubro/2009 até dezembro/2009, possuía 1 (um) único cotista, com um patrimônio líquido de R$ 4.948.992.480,90 (quatro bilhões novecentos e quarenta e oito milhões novecentos e noventa e dois mil quatrocentos e oitenta reais e noventa centavos).

A mesma ferramenta de pesquisa indica que, no momento da constrição judicial (1o/9/2014), o FIP possuía apenas 2 (dois) cotistas, com um patrimônio líquido de R$ 5.253.075.928,32 (cinco bilhões duzentos e cinquenta e três milhões setenta e cinco mil novecentos e vinte e oito reais e trinta e dois centavos), e que possui, atualmente, 3 (três) cotistas.

fácil perceber, portanto, a partir das premissas estabelecidas pelas instâncias ordinárias, que, no momento do bloqueio de valores determinado pelo juízo da execução, i) o fundo possuía apenas 2 (dois) cotistas: Bracol Holding Ltda. e Blessed Holding LLC; ii) as referidas empresas, sobretudo em função do valor irrisório do repasse de cotas, eram integrantes do mesmo grupo econômico e iii) assim agiram com desvio de finalidade e confusão patrimonial, visando a ocultação do seu verdadeiro patrimônio com o intuito de prejudicar credores, tudo isso segundo a apuração realizada na origem.

Isso, portanto, é o quanto basta para se concluir que o ato de constrição judicial, ao contrário do que afirma o recorrente, não atingiu o patrimônio de terceiros, mas apenas de empresas pertencentes ao mesmo conglomerado econômico.

Como visto, de acordo com a recente orientação trazida pelo Colendo Superior Tribunal de Justiça, a desconsideração da personalidade jurídica dos fundos de investimento em participação seria plenamente possível, desde que, no caso, se verifiquem hipóteses da entidade condominial ter agido em confusão patrimonial ou mediante atos de desvio de finalidade, com o intuito de lesar credores.

Por fim, é importante destacar que o caso ainda não galgou o seu fim, restando pendente o exame de recurso de Embargos de Divergência interposto pela vencida, até a data da redação deste artigo, em 09/08/2022.

MATHIAS MENNA BARRETO MONCLARO

Formado pela Universidade Positivo no ano de 2012. Inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil – Seccional do Paraná sob nº 66.373. Cursou especialização em Processo Civil pelo Instituto Romeu Felipe Bacellar no ano de 2013. Concluiu Legal Law Master (LLM) em Direito Corporativo pela Universidade Positivo no ano de 2015. Concluiu especialização em Gestão de Negócios na Fundação Dom Cabral em 2019. Realizou curso de extensão em Direito Societário na PUC-SP em 2021, bem como realizou cursos nas áreas de arbitragem, demonstrações financeiras e direito das sucessões. Atualmente é membro da Comissão de Direito Empresarial da OAB/PR.

“Art. 50. Os fundos em condomínios de títulos ou valôres mobiliários poderão converter-se em sociedades anônimas de capital autorizado, a que se refere a Seção VIII, ficando isentos de encargos fiscais os atos relativos à transformação.

  • 1o A administração da carteira de investimentos dos fundos, a que se refere este artigo, será sempre contratada com companhia de investimentos, com observância das normas gerais que serãotraçadas pelo Conselho Monetário Nacional.
  • 2o Anualmente os administradores dos fundos em condomíniosfarão realizar assembléia geral dos condôminos, com a finalidade de tomar as contas aos administradores e deliberar sôbre o balançopor êles apresentado.
  • 3o Será obrigatório aos fundos em condomínio a auditoria realizada por auditor independente, registrado no Banco Central.
  • 4o As quotas de Fundos Mútuos de Investimento constituídos em condomínio, observadas as condições estabelecidas pelo Conselho Monetário Nacional, poderão ser emitidos sob a forma nominativa, endossável ou ao portador, podendo assumir a forma escritural.”

“Art. 3o O fundo de investimento é uma comunhão de recursos, constituído sob a forma de condomínio, destinado à aplicação em ativos financeiros.

Art. 4o O fundo pode ser constituído sob a forma de condomínio aberto, em que os cotistas podem solicitar o resgate de suas cotas conforme estabelecido em seu regulamento, ou fechado, em que as cotas somente são resgatadas ao término do prazo de duração do fundo.”.

  • 1º  Não se aplicam ao fundo de investimento as disposições constantes dos arts. 1.314 ao 1.358-A deste Código.
  • 2º  Competirá à Comissão de Valores Mobiliários disciplinar o disposto nocaputdeste artigo.

DOTTA. Eduardo Montenegro, Responsabilidade civil dos administradores e gestores de fundos de investimento, São Paulo: Almedina, 2018, págs. 90-94.

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